Andanças Sertanejas:
relatos de uma vida semiárida
por Geovane Gesteira
Aos pés da Penha: o mar vai virar sertão e o sertão vai virar mar




Parte frontal da Catedral de Nossa Senhora da Penha, Crato - CE.
Geovane Gesteira, 2021.

O som abafado e contínuo dos benditos ecoam por todo o espaço sagrado. As pinturas sacras no teto em madeira e as vibrantes cores dos altares compartilham o ambiente com corpos humanos em súplica ao divino. O calor escaldante fora do templo justifica as orações diante da imagem de São José, pois talvez se tenha perdido a fé nas pedras de sal. A seca torna a vida árida. A seca faz com que o matuto deixe o seu chão rumo às terras do sul e sudeste. Oh, mãe da Penha! Por que alguns filhos teus sofrem mais do que outros com o torrão esturricado?

Os olhos misericordiosos da santa europeia observam com compaixão as vidas secas que aos seus pés rogam por uma vida mais vivível. Encontro-me na Igreja matriz do município de Crato, interior do Ceará. Tem nome indígena o meu Siará. Lugar onde cantam as jandaias, como diria José de Alencar. O Cratinho de açúcar, onde nasci e onde a terra há de reciclar as minhas entranhas, é encravado no território da Chapada do Araripe. Nesta terra, cujo nome em tupi guarani significa “lugar onde nasce o dia”, a colonização se deu em 1741 com a missão do Miranda, quando frades capuchinhos italianos violentaram e exploraram, por meio de um aldeamento, a nação indígena Kariri.

Os colonizadores trouxeram a primeira imagem da santa europeia, a qual passou a ser venerada em uma pequena capela que se tornou o templo onde estou. A minha avó sempre dizia, nas noites quando ouvíamos as suas histórias no balanço de uma rede no quintal, que esse local está construído sobre uma grande baleia adormecida. O povo Kariri conta que se as pessoas continuarem a destruir o corpo da mãe terra, uma grande rocha, denominada “pedra da batateira”, rolará e fará com que o sertão do Araripe se torne um grande oceano. O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão, já previra o profeta sertanejo Antônio Conselheiro. Se isso ocorrer agora, os meus olhos contemplarão a ressuscitação da baleia!

As paredes da casa da mãe da Penha sussurram as histórias e os sentimentos de todos que por aqui passaram. Da iniciação cristã do Padim Ciço na pia bastismal ao feminicídio de uma mulher na praça pública da igreja durante os festejos da padroeira, esse espaço reflete o Crato, onde a exuberância natural e cultural contrasta com o sangue que aduba a terra dos coronéis e do patriarcado.

Esses pensamentos me levam a um estado momentâneo de devaneio, o qual é interrompido pela observação de uma mulher que, ao segurar com afago um rosário que se encontra em torno do seu pescoço, passa a rogar aos pés da mãe da Penha. Ouço alguém a chamar de Maria. Maria de Nazaré, mãe do redentor dos cristãos. Maria Bonita, rainha do cangaço. Maria da Penha, ícone da luta contra a violência doméstica. Maria… As rugas do seu rosto castigado pelo sol se iluminam com o flamejar das velas que ardem como dia sertanejo. Escuto, de repente, quando ela pede pelo seu filho que, por labutar no corte de cana em São Paulo, não poderá regressar para o natal.

Bruscamente, a minha atenção é desviada pelo sino da igreja que soou três vezes, indicando a aproximação da missa das 17h. Despeço-me daquela Jerusalém sertaneja, momento em que peço a luz dos santos populares da minha terra. Maria Caboré, Dr. Gesteira, beato José Lourenço, beata Maria de Araújo, caboclos e boiadeiros, iluminem-me! Apressadamente me retiro da casa da mãe da Penha, pois tenho uma longa jornada e aqui não tenho morada...


Entre benditos e benzimentos: a vida de Maria




Maria Anunciada da Silva em seu quintal.
Arquivo pessoal, n/d.

Em 1940, entre animais e fezes de um singelo curral improvisado com estacas tortuosas, no município pernambucano de Bodocó, nasceu Maria Anunciada da Silva. Filha de Maria Calisto. Sem pai. Isto é, filha bastarda do Coronel Chico Romão. Assim tem início a história de Maria, uma vida marcada pela seca, desigualdades sociais, travessias e orações no sertão nordestino.

Ao nascer, Maria foi levada à casa da sua avó materna. Mariana, era o seu nome. Com ela, Maria aprendeu os serviços de casa, os benditos e as orações que a acompanham até os dias de hoje. Uma infância simples, sem acesso à escola e com uma intensa jornada de trabalho. Porém, Maria só guarda boas lembranças. O cheiro das “fulôs” de maracujá desabrochando na cerca, o encontro com Frei Damião durante uma missa, as noites de farinhada, as histórias de trancoso antes de dormir e os cânticos do ofício da Imaculada Conceição em meio aos bananais.

Com a partida da sua avó, Maria foi levada à fazenda Jacú, onde passou a morar com a sua tia. Uma mulher religiosa, porém, áspera no tratamento com a sobrinha. Maria conta que a mesquinhez da tia era tamanha que mesmo com suprimentos estocados, não era permitido matar a fome dos flagelados da seca que pelas estradas passavam.

Contudo, Maria relata que, dentre as suas travessuras de infância, encontra-se a doação de comida aos necessitados, contrariando as ordens dadas.

Aos 13 anos, Maria subiu em um pau de arara e fugiu rumo ao município de Crato, Ceará. Muito jovem e inexperiente, ao chegar na terra estranha, Maria passou a trabalhar como doméstica para prover o seu sustento. A vida de Maria, a partir de então, só encontrava deleite nas missas dominicais, quando lembrava da infância no regaço acolhedor da sua avó.
Aos 22 anos Maria casou-se, tendo oito filhos, porém, um deles morreu uma hora após o nascimento, sendo velado em uma caixa de sapatos. Maria seguiu a sua jornada, mesmo diante do amargor que a vida a trouxe. Vendendo mangas, doces, cabras e galinhas, ela labutou para dar o de comer aos seus.
Foi aos 35 anos que Maria iniciou a sua missão nos benzimentos e meizinhas. Para curar vento caído, espinhela caída, doença de olho e mau olhado, Maria benzia de “minino” a “véi” com o auxílio de ramos de pinhão-roxo. Além da cura pelas preces, Maria tinha nas ervas medicinais um suporte para o seu legado de curandeira. Com o decorrer dos anos, Maria passou a contar com a ajuda dos pretos velhos, boiadeiros e orixás na condução da cura espiritual e física dos seus filhos de fé.

Filha e devota de Yemanjá, até hoje Maria é reconhecida em sua comunidade como uma mulher poderosa. Conta-se que certa vez, ao rezar em uma criança desenganada pelos médicos, ela profetizou a sua cura. Essa criança, hoje, é um homem feito com uma grande família. Maria é assim, uma mulher de milagres. Não porque tem poderes sobrenaturais, mas porque conseguiu o florescimento do terreno árido que sempre a cercou. Como a virgem de Nazaré ao receber o anúncio do anjo, Maria Anunciada soube acolher os anúncios da vida e lutar contra as moléstias do mundo. Essa é a história de Maria, ou como a chamo, voinha.